A história por trás do Pedigree mais violento já aplicado

Brock Lesnar aterrissando de pescoço na lona após um shooting star press no WrestleMania 19. Sid Vicious quebrando a perna ao pular da corda mais alta no WCW Sin. Joey Mercury quebrando seu nariz durante uma luta de escadas no Armageddon. Acidentes inevitáveis acontecem na luta-livre desde sempre, dos mais remotos aos mais violentos e letais. É a indústria e lesões fazem parte do jogo. Erros e acidentes acontecem. Mas, na era das mídias sociais – e do Botchamania -, muitos desses erros outrora ignorados e apagados, acabam vindo à tona e viralizam. A curiosidade mórbida de assistir a alguém se machucando é inerente ao ser humano, desde a pancadaria de Laurel e Hardy em O Gordo e o Magro, nos anos 30, às Vídeocassetadas do Faustão. 

Certamente não é surpresa que os fãs da luta-livre tenham se animado com vídeos de, quiçá, o mais violento Pedigree aplicado por Hunter Hearst Helmsley, o Triple H, na história. Um erro que quase custou a vida de um lutador preliminar da Carolina do Norte em maio de 1996. O erro, desconfortável de se assistir, está no vídeo abaixo e a luta completa está disponível no YouTube.

A luta entre Hunter Hearst Helmsley e Marty Garner aconteceu em North Charleston, Carolina do Sul, no North Charleston Coliseum, em 28 de maio de 1996, em uma sequência de gravações da World Wrestling Federation (WWF). Dois dias antes, no domingo, a WWF apresentou o pay-per-view In Your House: Beware of Dog no Florence Civic Center em Florence, Carolina do Sul, um desastre imprevisível. Durante o evento, uma tempestade de raios cortou a energia elétrica da arena, com apenas dois combates sendo transmitidos ao vivo. Como reparação, a WWF refez o show na terça, a cerca de duas horas de distância de Florence, em North Charleston, com o card completo, aproveitando para gravar lutas para um de seus programas televisivos, o WWF Superstars.

As duas lutas exibidas durante o desastroso Beware of Dog original foram o combate principal, entre o campeão da WWF Shawn Michaels e The British Bulldog, e a luta de abertura entre “Wildman” Marc Mero e Hunter Hearst Helmsley. Mero, que havia chegado na companhia há dois meses, estava fazendo sua estreia em pay-per-views e saiu vitorioso do combate em pouco mais de 16 minutos. Ser derrotado na luta de abertura de um In Your House – uma série de eventos de menor importância, na época – não era coincidência para Hunter, que estava sentindo as consequências de sua participação em um dos momentos mais importantes da década, cujos reflexos seriam sentidos por anos na luta-livre: a Curtain Call.

Nove dias antes das gravações do WWF Superstars e do segundo Beware of Dog, em 19 de maio, a WWF apresentou um evento não-televisionado em sua arena-natal, o Madison Square Garden, em Nova Iorque. Na frente de quase 19 mil fãs, a WWF colocou nas duas principais lutas da noite quatro dos membros do grupo conhecido como Kliq, uma facção real de amigos nos bastidores da WWF dos anos 90, famosa por influenciar as decisões criativas da empresa de Vince McMahon em favor de seus membros e contra seus adversários. Naquela noite em Nova Iorque, Helmsley derrotou Razor Ramon enquanto, na luta final da noite, Shawn Michaels derrotou Diesel em uma jaula de ferro. Ramon e Diesel – respectivamente Scott Hall e Kevin Nash – estavam de saída da WWF para a rival World Championship Wrestling (WCW) e, aproveitando das costas quentes do grupo, realizaram uma despedida no ringue. Ignorando as personagens, alianças de heróis e vilões e quebrando a ilusão da realidade da luta-livre, Michaels, Nash, Hall e Helmsley se abraçaram no ringue e comemoraram com a plateia.

Filmado por alguns fãs, o evento escandalizou lutadores, fãs e agentes da companhia: em 1996, sem redes sociais, ainda se mantinha a ilusão de que os vilões eram malvados e o que os heróis eram bonzinhos na vida real: e que os dois grupos não socializavam. Quebrar essa ilusão era ir contra os costumes tradicionais da luta-livre e expor abertamente a teatralização dos negócios. Nos olhos de McMahon e do escritório, o ato era um escárnio e precisava ser punido exemplarmente. Mas quem deveria ser castigado? Nash e Hall não estavam mais sob contrato e Michaels era o campeão preferido de Vince. Sobrou Hunter Hearst Helmsley.

Em 1996, Helmsley não era Triple H. Não existia D-Generation X, tampouco 14 reinados como campeão mundial. Ele era apenas um lutador de meio-de-card, com amizades importantíssimas, mas ainda baixo na lista de prioridades. Portanto, a punição era óbvia. Rumores indicam que, antes do incidente no Madison Square Garden, Helmsley receberia uma boa atenção da equipe criativa, ganhando o tradicional torneio King of the Ring no pay-per-view homônimo no final de junho, se consagrando como um importante player nos meses seguintes. Ao invés de vencer o torneio, Hunter foi eliminado na primeira fase da competição, derrotado pelo veterano Jake “The Snake” Roberts em passagem relâmpago pela companhia. O torneio seria vencido por “Stone Cold” Steve Austin, coroado com seu histórico discurso “Austin 3:16”. No pay-per-view, em junho, Hunter lutaria em um combate não-televisionado antes do início do show.

No entanto, nas gravações do WWF Superstars em North Charleston, a punição de Helmsley ainda não parecia estar em efeito: ele foi colocado em uma luta contra Marty Garner, um talento local de 29 anos ali para perder de forma fácil e fazer com que Helmsley parecesse um lutador impressionante. Natural da Carolina do Norte, Garner conheceu Matt Hardy em uma academia e, logo em seguida, se tornou um dos membros da federação de quintal dos irmãos Matt e Jeff Hardy, por quem foi treinado. Junto com os Hardys e outros locais, como Shannon Moore e Shane Helms, Garner lutou na OMEGA e na New Frontier Wrestling Association (NFWA). Assim como os Hardys, que conseguiam posições preliminares na WWF com a ajuda de The Italian Stallion, Garner arranjou algumas aparições na companhia como lutador-a-ser-derrotado. No WWF Superstars exibido em 13 de janeiro de 1996, Garner foi derrotado por Jeff Jarrett. Durante a luta, Jarrett se posicionou fora do ringue e desviou de um suicide dive de Garner. Ele aterrissou no chão, fora do ringue, próximo ao gradil, diretamente em seu pescoço.

Além de reprisar algumas vezes a assustadora queda de Marty Garner, a WWF ainda o usaria em outras oportunidades. Em 27 de maio, nas gravações de lutas para o Monday Night Raw em Fayetteville, Carolina do Norte, aonde Hunter foi derrotado por Jake Roberts no King of the Ring, Garner saiu vitorioso em um combate preliminar contra outro discípulo dos Hardys, Jason Arhndt, o futuro Joey Abs, da Mean Street Posse. Na noite seguinte, ele seria derrotado em duas lutas. Uma, contra Jerry “The King” Lawler. A segunda, contra Helmsley. Contra Lawler, Garner conseguiu um diving crossbody, mas acabou derrotado após a aplicação do tradicional piledriver de Lawler em menos de dois minutos. A luta também está no YouTube.

O combate contra Helmsley não é muito notável. O aristocrata inicia dominando Garner no formato de luta greco-romana e lhe acerta alguns tapas, seguindo com armringers enquanto um vídeo é exibido, com Hunter falando sobre Jake Roberts. Garner consegue um dropkick nas costas de Hunter e um armdrag, antes de perder a guarda para um tilt-a-whirl backbreaker. Depois do tradicional high knee, Hunter prepara o seu finalizador, o Pedigree. Ele coloca a cabeça de Garner entre suas pernas e prende os braços do oponente. E, depois, pula de joelhos. Ao invés de cair reto, de barriga para baixo, Garner faz uma pequena rotação, como se esperasse tomar uma powerbomb ou um suplex. Como resultado, Garner é cravado de cabeça na lona. É o Pedigree mais brutal que muitas pessoas já viram. O movimento, como esperado, lesionou o pescoço de Garner.

Alguns culpam Triple H pelo erro. Em tese, ele deveria ter esclarecido com Garner antes do combate como receber o Pedigree. Fato é que, aparentemente, nem Triple H procurou Garner, nem Garner procurou Triple H especificamente sobre o movimento. Assumiu-se que não havia dúvidas e que ambos sabiam o que estavam fazendo. Não era o caso. Ou, talvez, Triple H, sentindo insegurança por estar em uma posição vulnerável às punições da direção causada por suas ações e a de seus amigos, optou por usar de uma brutalidade maior com um lutador preliminar 10 dias após ser colocado em uma situação complicada com o resto da companhia. De todo modo, segundo as bases de dados disponíveis, Garner ficaria fora de ação até agosto, quando reapareceria na NFWA de Matt Hardy. Pela lesão e falta de comunicação, Marty Garner entraria com uma ação judicial contra a WWF e as partes se resolveriam com um acordo fora da corte. Ele compartilharia a experiência em talk shows, como o de Montel Williams e Jenny Jones.

Independentemente disso, Garner continuaria a fazer aparições pela companhia a partir do final de setembro, enfrentando lutadores como Faarooq, Jake Roberts, Jim “The Anvil” Neidhart e Tajiri. Em 1999, ele passou a interpretar o caipira Puck Dupp na Extreme Championship Wrestling (ECW), com Bo Dupp (Otto Schwanz) e Stan Dupp (Trevor Murdoch), mas não teria muito mais destaque na luta-livre. Já a punição de Triple H acabaria lá por outubro de 1996, quando ele derrotaria Marc Mero pelo título intercontinental, sendo catapultado para uma posição de maior destaque, que o permitiria criar a D-Generation X com Shawn Michaels.

No SummerSlam de 1997, Owen Hart aplicou erroneamente um tombstone piledriver em “Stone Cold” Steve Austin, quebrando seu pescoço e o deixando momentaneamente paralisado. A lesão forçou Austin a mudar totalmente seu estilo de luta. Em 5 de outubro de 1999, durante as gravações do SmackDown!, Darren Drozdov, conhecido como Droz, se acidentou em um combate contra D’Lo Brown. Os dois não conseguiram realizar uma running powerbomb corretamente e Droz acabou caindo de cabeça. A lesão o deixou tetraplégico. Acidente acontecem. Faz parte da indústria. Felizmente, Hunter e Marty escaparam de um destino trágico.

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